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Comentário

O crime do artigo 302 inaugura a Seção II do Capítulo XIX do CTB, que versa sobre os crimes de trânsito, prevendo a conduta de matar alguém de maneira culposa, na direção de veículo automotor. Como se verifica neste comentário introdutório, a conduta punível é a de matar alguém e não a de praticar homicídio, redação equivocada do legislador de trânsito.

Aliás, para que seja possível compreender a aplicação deste dispositivo legal, faz-se necessário entender, inicialmente, o que é homicídio (nome dado pelo Código Penal ao crime previsto em seu artigo 121 – matar alguém) e, num segundo momento, o que é o crime culposo (segundo o artigo 18, inciso II, do Código Penal, é aquele cometido quando o agente deu causa ao resultado imprudência, negligência ou imperícia, isto é, sem a intenção de que ocorresse a morte da vítima).

Portanto, duas são as condições para a ocorrência do crime do artigo 302: 1ª) que o autor não tenha provocado a morte de maneira intencional; 2ª) que tenha sido cometido na direção de um veículo automotor.

Cabe consignar, desta forma, que, se o autor do crime teve a intenção ou assumiu o risco na produção do resultado (o que é analisado diante das circunstâncias de cada fato), a punição deixa de ser a prevista no artigo 302 do CTB (detenção de dois a quatro anos), para ser a constante do artigo 121 do Código Penal: reclusão de seis a vinte anos.

A pena cumulativa de “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor” não se confunde com a suspensão administrativa, imposta pelo órgão de trânsito, pois se trata de sanção judicial, aplicada pelo juiz, nos termos dos artigos 292 a 296, num período que pode variar de dois meses a cinco anos.

Embora o artigo 291 preveja que, aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, aplicam-se as normas gerais do Código Penal, um entendimento predominante sobre o assunto é o de que, ao crime de trânsito de homicídio culposo, também é aplicável a regra do perdão judicial, previsto na parte especial do CP, especificamente no § 5º do artigo 121: “No caso de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”; o que acontece, por exemplo, em uma situação de atropelamento não intencional de um filho, quando o pai vai manobrar o veículo para sair da garagem.

O § 1º do artigo 302 estabelece as quatro causas de aumento de pena, das quais destacamos o inciso III, que versa sobre a omissão de socorro: por se tratar de circunstância prevista para o aumento de pena do causador da morte de alguém, neste caso, estará afastado o cometimento isolado do crime específico do artigo 304 do CTB, que versa justamente sobre a omissão de socorro (ou seja, o crime de omissão somente se configura de maneira subsidiária, quando o condutor não for o responsável pela morte).

A inserção do § 3º é, sem dúvida, a principal alteração trazida pela Lei n. 13.546/17, já que o objetivo do PL que lhe deu origem (n. 5.568/13) era exatamente aumentar as penas do condutor que, sob influência de álcool, causa mortes no trânsito.

A combinação das condutas de “dirigir sob influência de álcool” e “matar alguém, na direção de veículo”, que constituem crimes autônomos (respectivamente, artigos 306 e 302 do CTB) tem sido tratada de várias formas, ao longo do tempo, merecendo destaque as seguintes alterações no CTB:

- de 2006 a 2008, o fato de o condutor estar sob influência de álcool constituía causa de aumento de pena (de um terço à metade) nos crimes de homicídio culposo (artigo 302, § 1º, V) e lesão corporal culposa (artigo 303, parágrafo único) – tal inciso foi incluído pela Lei n. 11.275/06 e revogado pela Lei n. 11.705/08; e

- de 2014 a 2016, a ocorrência de morte, causada por condutor com alteração da capacidade psicomotora passou a ser tratada como uma forma qualificada do homicídio culposo (sem a mesma menção no crime de lesão corporal culposa), por conta da inclusão do § 2º ao artigo 302, pela Lei n. 12.971/14, o qual, entretanto, foi revogado pela Lei n. 13.281/16 (estranhamente, porém, esta forma qualificada apenas ‘mudava’ a pena privativa de liberdade, em vez de DETENÇÃO de 2 a 4 anos, para RECLUSÃO de 2 a 4 anos, mas sem aumento na dosimetria).

Além disso, existem posicionamentos divergentes na doutrina e jurisprudência, quanto a dois aspectos fundamentais, para se determinar qual será a punição do motorista que bebe, dirige e mata:

1º) O crime (homicídio causado por motorista embriagado) é culposo ou doloso? Há um posicionamento (não dominante) de que o motorista bêbado que causa a morte de outra pessoa deva ser processado pelo crime de homicídio DOLOSO, previsto não no CTB, mas no Código Penal (artigo 121), com pena de 6 a 20 anos (muito maior que a pena de 2 a 4 anos, do crime de trânsito), na modalidade de dolo EVENTUAL (em que o autor do crime assume o risco de produzir o resultado). Tal conclusão depende, unicamente, da análise das circunstâncias de cada caso e, portanto, não havia uma forma de dizer, até então, que TODO crime de homicídio (ou lesão corporal) causado por motorista embriagado é CULPOSO ou DOLOSO; e

2º) Por serem crimes autônomos, quando praticados em conjunto, um absorve o outro (princípio da consunção) ou devem ser somados (concurso material, nos termos do artigo 69 do CP)? É possível encontrar, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, os dois posicionamentos. Se defendermos a consunção, o crime de alcoolemia ao volante deixa de ser apenado, restando apenas o homicídio; se, por outro lado, entendermos que há concurso material, a pena poderia chegar a até 7 anos (4 anos do homicídio culposo, se aplicada a pena máxima + 3 anos da alcoolemia) ou a até 27 anos, se juntarmos com a explicação anterior, quanto ao dolo eventual (20 do homicídio doloso + 3 da alcoolemia).

Assim, podemos dizer que, SEM QUALQUER ALTERAÇÃO no CTB, seria possível um maior rigor da punição aos ébrios do volante, bastando que Ministério Público e, principalmente, Poder Judiciário dessem a cada caso, a interpretação menos benevolente, contemplando a tese do dolo eventual e do concurso material de crimes.

A inclusão do § 3º ao artigo 302, apesar de trazer uma pena maior do que a prevista para o homicídio culposo, sem a qualificadora da alcoolemia, acaba por repercutir em três questões cruciais:

1ª) não será mais possível conceber esta situação como crime doloso, pois a própria Lei já determina que é uma forma qualificada do culposo (o que ocorreu em 2006 e em 2014, que, exatamente por este motivo, foi revogado em 2008 e, novamente, em 2016);

2ª) não será mais possível adotar a tese de concurso material, pois o crime do artigo 306 passou a ser subsidiário (assim como ocorre com a omissão de direitos, conforme artigo 44 do Código Penal (era isso que o § 3º do artigo 291 pretendia evitar, mas foi vetado); neste sentido, vale destacar que o artigo 312-A do CTB, incluído pela Lei n. 13.281/16, prescreve que a pena alternativa deve ser imposta como prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, de atendimento às vítimas de trânsito.

Em suma, a inserção do § 3º não merece ser tão festejada assim, pois, sem ela, seria possível alcançar resultados mais rigorosos em termos de punição. Vale lembrar que os (poucos) casos de condenação (ou processos em andamento) por dolo eventual e/ou concurso material poderão, inclusive, serem revistos, em consideração ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal).

Por fim, destacamos uma impropriedade redacional na pena acessória do § 3º do artigo 302: “suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, pois foram colocadas duas palavras a mais aí (‘do direito’), já que a nomenclatura correta, prevista no artigo 292 e em todos os crimes em que ela aparece, é “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

 
 
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Capitão da Polícia Militar de São Paulo, com atuação no policiamento de trânsito urbano desde 1996; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Professor, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.

Autor:

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Art. 302

Capítulo XIX - DOS CRIMES DE TRÂNSITO

Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1º. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do sinistro;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
 
§ 2º.  (Revogado pela Lei nº 13.281, de 2016)
 
§ 3º  Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
 
(§ 3º incluído pela Lei nº 13.546, de 2017)
 
 
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