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Art. 148 - Fiscalização de trânsito em época de pandemia, por Julyver Modesto de Araujo

Estamos vivendo um período de dificuldades e incertezas, frente à propagação de uma ameaça que, apesar de invisível, é capaz de provocar enormes estragos. A pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde, por conta do corona vírus (covid19), e as ações governamentais decorrentes alteraram hábitos, rotinas, relações profissionais e interpessoais, em um cenário desafiador e de proporções inimagináveis até pouco tempo atrás.

Embora existam várias outras causas de morte no Brasil e no mundo, que mereceriam a mesma atenção e conjugação de esforços de toda a coletividade para sua solução, como é o caso, em especial para nós que trabalhamos na área, das tragédias no trânsito, o fato é que o problema que ora enfrentamos se tornou prioridade, desde os debates acalorados (e de opiniões antagônicas) na mídia e nas redes sociais, até as ações desencadeadas pelos órgãos públicos.

Ainda que o vírus tenha se colocado como primeira preocupação da sociedade (não se sabe ainda por quanto tempo), é desnecessário dizer que ele não teve o condão de resolver todos os outros males sociais, ou seja, mesmo com todas as preocupações para não se contrair o vírus que ora se combate, continuaremos, infelizmente, a conviver com mortes decorrentes dos diversos outros fatores que anteriormente já nos afetavam, inclusive o TRÂNSITO.

De nada adianta, por certo, utilizar máscaras e higienizar as mãos com álcool em gel, se a conduta na via pública continuar a ser imprudente e sem as precauções de segurança que, desde há muito, temos (profissionais do trânsito) nos empenhado em estabelecer como necessárias.

Por incrível que pareça, as estatísticas de trânsito nos parecerão mais promissoras, quando avaliados tão somente os números de mortes e lesões neste período, já que o isolamento social e a quarentena domiciliar recomendados, ao causarem uma diminuição de pessoas na via pública, também impactam na menor exposição dos indivíduos aos riscos que nos submetemos todos os dias; tal constatação não é, entretanto, motivo de comemoração e nem mesmo de contração do empenho de todos os órgãos de trânsito, na melhoria das condições de segurança viária.

Neste sentido, é de se questionar como deve ser a ação de FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO: o que deve mudar nestes tempos de pandemia?

O Presidente do Conselho Nacional de Trânsito expediu as Deliberações n. 185, 186, 187 e 188/20, para padronizar os procedimentos dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito neste período crítico, das quais destacarei os seguintes assuntos, relativos à fiscalização:

1. Interrupção de prazos (Deliberação n. 185/20)

Estão interrompidos, por tempo indeterminado, os seguintes prazos:

1.1. Interposição de defesa e recursos, em 1ª e 2ª instâncias, tanto de multa, quanto de suspensão do direito de dirigir e cassação do documento de habilitação;

1.2. Indicação de condutor infrator;

1.3. Transferência de veículo;

1.4. Registro e licenciamento de veículos novos; e

1.5. Renovação do exame de aptidão física e mental da Carteira Nacional de Habilitação e Permissão para Dirigir, quando vencido a partir de 19/02/2020 (ou seja, os documentos de habilitação que vencerem a partir da data mencionada continuam válidos para todos os efeitos, não incidindo o condutor na infração do artigo 162, V, do Código de Trânsito Brasileiro – “dirigir veículo com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias”).

interrupção (diferente do instituto processual da suspensão) significa que o prazo recomeçará do zero, quando encerrado o período que a motivou (havendo a necessidade, portanto, de posterior ato normativo divulgando a data de início dos novos prazos).

2. Expedição de notificações de autuação e de penalidade (Deliberação n. 186/20)

Como estão interrompidos os prazos de defesa, indicação de condutor infrator e de recurso, de nada adiantaria expedir as notificações neste período, motivo pelo qual ficou assim decidido:

2.1. Notificação de autuação deve apenas ser inserida no sistema de processamento de dados do órgão autuador, para cumprimento do prazo máximo de 30 dias, sem remessa ao proprietário do veículo;

2.2. Quando encerrada a interrupção de prazos, com revogação da Deliberação n. 185/20, a notificação de autuação deve ser expedida contendo a data de término do prazo para indicação de condutor infrator e apresentação de defesa da autuação;

2.3. Notificação de penalidade NÃO deve ser expedida por enquanto (por critério lógico, já que o prazo para defesa está interrompido).

A expedição de atos normativos infralegais (como as mencionadas Deliberações assinadas pelo Presidente do Contran), embora questionável juridicamente, por, de certa forma, alterar regras que constam da Lei, tem por objetivo principal regular os procedimentos a serem adotados pelos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito, neste período em que muitos deles estão, é de se frisar, sem atendimento presencial, motivo pelo qual entendo que as regras são razoáveis e legítimas, até porque criam benefícios (e não ônus) para os cidadãos. Esperar modificação legislativa para dar validade a tais propostas redundaria, muito provavelmente, em não solução.

Além destas regras estabelecidas expressamente, algo que penso ser salutar para a eficiência e eficácia na prestação do serviço público reside na padronização interna dos órgãos de fiscalização, em suas atividades rotineiras.

Isto porque, embora, em minha opinião, seja adequado manter a fiscalização eletrônica (por meio de equipamentos medidores de velocidade ou sistemas automáticos não metrológicos), para garantir níveis mínimos de segurança viária, a fiscalização realizada por agentes de trânsito deve ser repensada e programada de forma a conciliar a necessidade de preservação da segurança viária com a diminuição do risco de contágios.

A realização de bloqueio de fiscalização de trânsito (a chamada blitz), por exemplo, como forma de prevenção, dissuasão de comportamentos infracionais e verificação das irregularidades na condução do veículo, é algo a ser avaliado com cuidado, até mesmo quando a intenção for, de forma aleatória, constatar o consumo de álcool pelos condutores, por meio do uso do etilômetro, nas chamadas Operações “Lei Seca”, “Balada segura”, “Direção Segura” ou qualquer outra denominação que venha sendo utilizada – não obstante a importância (e necessidade) de continuar a fiscalização de alcoolemia, defendo, durante o período em que vivemos, o seu direcionamento aos casos pontuais, quando alguém apresenta sinais de alteração de capacidade psicomotora, e não de maneira maciça e indiscriminada.

Apontei, exemplificadamente, a questão da alcoolemia, mas a mesma análise serve para toda a fiscalização preventiva, normal e perfeitamente legal no cotidiano dos órgãos policiais e fiscalizadores – não há muita lógica, neste período de quarentena e isolamento, realizar operações voltadas à abordagem de veículos e condutores, para verificação da regularidade do licenciamento, da habilitação, equipamentos obrigatórios e demais condições necessárias à circulação em via pública.

É claro que, em se deparando com infrações de trânsito relativas a tais situações, a consequência legal cabível é a elaboração do auto de infração pelo agente de trânsito (e consequente imposição de penalidade), como em qualquer outra conduta irregular, mas não vejo por que se buscar a fiscalização destes itens, como parte do serviço rotineiro dos órgãos.

Aliás, o papel do agente de trânsito vai muito além da “busca” por infrações já cometidas, pois sua atuação ostensiva, que continua normalmente, permite a prevenção, a fim de evitar os comportamentos infracionais; ademais, no exercício da operação de trânsito, ao realizar o monitoramento técnico da via, este profissional reveste-se de elevada importância para assegurar ao cidadão a mobilidade urbana eficiente, nos termos do artigo 144, § 10, da Constituição Federal.

De toda forma, não há que se olvidar que a fiscalização necessita ser planejada e executada conforme a realidade social e a proteção ao interesse público. De igual sorte, as medidas administrativas decorrentes das infrações de trânsito também devem ser adaptadas pelos órgãos e entidades de trânsito, para que haja lógica e razoabilidade em sua adoção – não faz sentido, por exemplo, o agente de trânsito que está nas ruas, fiscalizando e coibindo as condutas infracionais, efetuar o recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual ou a remoção de um veículo, por infração em que se prevejam tais providências complementares, se o órgão competente (seja na prestação direta do serviço público, seja mediante concessão à iniciativa privada) não está atendendo a população para a liberação do documento e/ou do veículo.

É claro que não se trata de uma matemática simples, pois existirão situações em que a retirada do veículo de circulação se faz necessária para a segurança de todos os outros usuários; por este motivo, apontei que (não havendo regulamentação a respeito) cabe a cada órgão estabelecer os critérios objetivos a serem atendidos.

Independente dos ajustes necessários, não se pode relegar a fiscalização de trânsito a segundo plano, já que as preocupações VIRAIS não excluem as VIÁRIAS. De nada adianta proteger as pessoas do vírus, se deixarmos de lado a necessidade de protegê-las dos outros perigos com os quais, infelizmente, já convivemos há muito mais tempo.

Discordo, por exemplo, de mudanças que têm sido implantadas em alguns municípios, no sentido de “isentar de capacete de segurança” os passageiros de moto táxi. Ora, a preocupação é de que não morram os ocupantes de tais veículos ou que não morram de covid19? A segurança viária não pode ficar de quarentena e continua precisando de nossos cuidados!

Tenho visto, inclusive, vídeos de pessoas reclamando da fiscalização de trânsito realizada neste período, mas reclamações sempre existiram e continuarão a existir! Gostem ou não do remédio, o condutor continuará sujeito às punições pelo descumprimento da Lei, ainda que em estado de calamidade pública.

Ao final desta experiência tenebrosa, que a história nos mostre a superação dos obstáculos e o aprendizado com a crise. Se, juntos, podemos vencer o corona vírus, também podemos vencer o vírus que vem de carona na utilização da via pública!

E é, relativamente, muito simples não ser atingido pelos perigos VIRAIS VIÁRIOS: lavem as mãos, usem álcool em gel e, se contaminados, protejam os outros usando luvas e máscaras; se puder, isole-se em casa; quem não pode, seja PRUDENTE NO TRÂNSITO!

 

São Paulo, 29 de março de 2020.

 

JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Consultor e Professor de Legislação de trânsito, com experiência profissional na área de policiamento de trânsito urbano de 1996 a 2019, atualmente Major da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo; Conselheiro do CETRAN/SP desde 2003; Membro da Câmara Temática de Esforço Legal do Conselho Nacional de Trânsito (2019/2021); Mestre em Direito do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP, e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP; Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Coordenador de Cursos, Palestrante e Autor de livros e artigos sobre trânsito.

 

AS IMAGENS EXIBIDAS SÃO MERAMENTE ILUSTRATIVAS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. ATUALIZADO EM: 20/09/2017. POWERED BY TOTALIZE INTERNET STUDIO.  Site map