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Art. 252 - Uso do telefone celular em "viva-voz", por Julyver Modesto de Araujo

Em 01/11/16, entrarão em vigor várias alterações do Código de Trânsito Brasileiro, promovidas pela Lei n. 13.281/16 (conversão da Medida Provisória n. 699/15). Uma delas será a inclusão do parágrafo único ao artigo 252, estabelecendo que “a hipótese prevista no inciso V caracterizar-se-á como infração gravíssima no caso de o condutor estar segurando ou manuseando telefone celular”, sendo que o inciso V prescreve a infração de trânsito, de natureza média, por “dirigir o veículo com apenas uma das mãos, exceto quando deva fazer sinais regulamentares de braço, mudar a marcha do veículo, ou acionar equipamentos e acessórios do veículo”; ou seja, se o condutor tirar uma das mãos do volante para segurar ou manusear o telefone celular, a infração deixa de ser média para se tornar gravíssima, sujeita à multa de R$ 293,47 (novo valor, também a contar de 01/11) e 7 pontos no prontuário do condutor.

O Departamento Nacional de Trânsito, inclusive, já até estabeleceu códigos de enquadramento para processamento desta nova multa de trânsito, por meio da Portaria n. 127/16: código 763-31 (segurando) e 763-32 (manuseando).

Ocorre, entretanto, que existe uma infração relacionada à utilização de telefone celular enquanto dirige, que é a estabelecida no inciso VI do mesmo artigo, com a seguinte redação: “dirigir o veículo utilizando-se de fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora ou de telefone celular”, que continuará sendo de natureza média, sujeita à multa de R$ 130,16 (novo valor, a contar de 01/11) e 4 pontos no prontuário.

O melhor, na minha singela opinião, seria que se criasse um novo inciso do artigo 252 (em vez de se inserir um parágrafo único), específico para utilização do telefone celular pelo condutor. Como isto não ocorreu, a coexistência de dois enquadramentos distintos para tratar de situações semelhantes exige-nos análise sobre quais serão os casos a configurarem a infração de menor gravidade, do inciso VI do artigo 252.

E, para tanto, devemos perquirir se a utilização de telefone celular sem tirar as mãos do volante configura ou não infração de trânsito, principalmente pelo fato de que tem sido cada vez mais comum a utilização de sistemas de “viva-voz”, seja diretamente pelo aparelho, seja pela conexão “bluetooth” com o equipamento de som automotivo ou até mesmo com tecnologia originalmente instalada no próprio veículo, do tipo “hands free”, que permite a utilização de comandos embutidos no volante ou pela voz do condutor, para operar o telefone celular (recentemente, um polêmico comercial de automóvel ressaltava justamente a conectividade que ele oferece – veja em https://www.youtube.com/watch?v=UVEiP0Gpc-o).

Se fizermos uma retrospectiva legislativa, veremos que o Código Nacional de Trânsito anterior, de 1966, não fazia qualquer menção à utilização da telefonia celular pelo condutor, obviamente pela inexistência de tal equipamento. No artigo 89, inciso XXI, letra b, da Lei n. 5.108/66 (CNT), o que havia era a proibição a todo condutor de veículos de dirigir “usando apenas uma das mãos, exceto quando deva fazer sinais de braço ou mudar a marcha de câmbio, ressalvados os casos previstos no artigo 76” (praticamente a infração que hoje se encontra no artigo 252, inciso V, do atual CTB, exceto pelo fato de que a legislação anterior discriminava, de forma expressa, ao mencionar o artigo 76, que tal regra não se aplicava aos “portadores de defeitos físicos”, os quais poderiam ter CNH na categoria amador, com a exigência das devidas adaptações).

Em 1994, com a proliferação da telefonia celular, o Conselho Nacional de Trânsito posicionou-se a respeito, por meio da Decisão n. 04/94 (Diário Oficial da União de 16/05/94 - http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=4&data=16/05/1994), estabelecendo que a “utilização de telefonia móvel celular pelo condutor do veículo em movimento é proibida e se constitui em infração de trânsito, devendo ser capitulada como infringência ao CNT, conduta tipificada no Art. 89, inciso XXI, letra b”, isto é, pela falta de infração específica, decidiu-se que deveria ser aplicada a multa relativa à condução do veículo com apenas uma das mãos; por este motivo, o artigo 2º de citada Decisão ainda acrescentou que “o uso de telefonia móvel celular pelo condutor do veículo em movimento, não consiste infração quando se opera equipamento especial de viva voz, ou outro que libere as mãos de quem o utilize, instalado acessoriamente no automotor”, o que não poderia ser de outro modo (pela legislação então vigente), já que a conduta punível referia-se à retirada de uma das mãos do volante.

Esta Decisão, vez ou outra, tem sido utilizada por alguns estudiosos do trânsito, para justificar o posicionamento de que o “viva-voz”, “bluetooth” ou “hands free” são permitidos, o que não deve prosperar, posto que tal posicionamento era anterior ao atual Código de Trânsito, que entrou em vigor quase 4 anos depois, com uma infração específica para esta conduta.

Destarte, com a redação do inciso VI do artigo 252, passou a ser PROIBIDA a utilização do telefone celular, de qualquer forma, sendo o que se depreende da simples leitura deste dispositivo legal, que assim se apresenta: “Dirigir o veículo utilizando-se de fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora ou de telefone celular”. Ressalte-se que, diferentemente do que alguns imaginam, a expressão “telefone celular” não se trata de complemento à conexão de fones nos ouvidos, mas sim do verbo “utilizando-se”.

Em outras palavras, não há a necessidade da conexão do fone ao telefone celular para se punir a conduta, pois, se assim o fosse, o texto seria ligeiramente diferente, trocando-se a preposição “de”, antes de “telefone celular”, pela preposição “a”: “Dirigir o veículo utilizando-se de fones nos ouvidos conectados A aparelhagem sonora ou A telefone celular”.

Assim, duas são as condutas puníveis por este inciso, cuja análise simplesmente linguística nos permite vislumbrar:

I) Dirigir o veículo utilizando-se DE fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora; e

II) Dirigir o veículo utilizando-se DE telefone celular.

Seguindo-se tal raciocínio, pouco importa de qual maneira se utiliza o telefone celular, se segurando com uma das mãos, com ambas as mãos, apoiado entre a orelha e o ombro, com fones nos ouvidos (ou com um fone só), no “viva-voz”, “bluetooth” ou “hands free”. Há algum tempo, já alertei para esta questão, em matéria publicada pela Perkons, em http://www.perkons.com.br/pt/noticia/1602/itens-veiculares-que-podem-trazer-riscos-ao-condutor.

Quanto à utilização de fones nos ouvidos, o Departamento Nacional de Trânsito chegou a publicar, em 2002, a Portaria n. 24/02, consolidando o entendimento da inexistência de infração pelo uso de aparelho de fone de ouvido, do tipo monoauricular (em apenas um dos ouvidos); todavia, esta Portaria foi “tornada sem efeito”, pouco tempo depois, pela Portaria n. 48/02, em decorrência de estudo técnico realizado pela ABRAMET – Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, que alertava para o perigo do uso do aparelho celular e seus acessórios ao volante (ambas podem ser consultadas em http://www.denatran.gov.br/index.php/portarias).

Interessante que, se observarmos as fichas de enquadramento do artigo 252, inciso VI, no Volume I do Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito (Resolução do CONTRAN n. 371/10), veremos que, no caso dos fones conectados a aparelhagem sonora (código de enquadramento 736-61), entende o Conselho Nacional que NÃO DEVE ser autuado o condutor que utiliza o fone em apenas um dos ouvidos; entretanto, para a utilização de telefone celular (736-62), pune-se tanto fone (no singular), quanto fones (no plural). Obviamente que, para ambos os enquadramentos, a abordagem do veículo se torna obrigatória para configurar o cometimento da infração respectiva, o que dificulta a fiscalização de trânsito.

Aliás, a dificuldade para se fiscalizar é, exatamente, o que faz difundir a ideia de que o celular pode ser utilizado quando as duas mãos permanecem no volante, já que é difícil, ao agente de trânsito, com o veículo em movimento, saber se o condutor está falando sozinho, cantando uma música, recitando um poema, decorando uma matéria de prova etc, exceto se a conduta ocorrer quando o veículo estiver ao lado do agente de trânsito, por exemplo, inclusive quando da interrupção de marcha temporária, como no momento em que se aguarda a abertura do semáforo (já que o Manual de Fiscalização determina que a infração ocorre mesmo nesta situação).

Importante destacar que a retirada de uma das mãos do volante representa uma distração física na condução do veículo, mas este não é o único problema ocorrido com a utilização do telefone celular, que também compreende a distração visual e a distração cognitiva.

A distração visual porque, mesmo falando no “viva-voz” ou usando o som automotivo, comprovou-se que o condutor simplesmente NÃO PRESTA ATENÇÃO ao seu campo visual de maneira completa, deixando de registrar determinados elementos da via pública por onde transita (veja as matérias mencionadas abaixo, que abordam estudo realizado nos Estados Unidos, pela Universidade de Utah).

A distração cognitiva se dá porque, quando se fala ao telefone celular, o cérebro processa as informações de maneira diferente do que quando conversamos com um passageiro dentro do veículo, havendo maior abstração do pensamento, com a necessidade de imaginar se o interlocutor está ou não acompanhando a comunicação, por conta da ausência física e da impossibilidade de se avaliar outros elementos da linguagem não verbal; além disso, quando se conversa com alguém que também está dentro do carro, eventualmente uma distração do condutor pode ser superada pela observação e intervenção do passageiro, quando nota uma condição adversa que não estava sendo percebida naquele momento (o que, obviamente, não ocorre quando se fala com alguém que está “do outro lado da linha”).

O perigo da utilização do telefone celular já tem sido apontado há muito tempo, em diversos estudos relacionados à segurança do trânsito. Para quem tiver interesse no assunto, recomendo leitura do seguinte material complementar:

- Pesquisa publicada no “The New England Journal of Medicine”, de 1997, concluindo que a utilização do telefone celular enquanto dirige aumenta em 4 vezes a possibilidade de colisão: http://www-nrd.nhtsa.dot.gov/departments/Human%20Factors/driver-distraction/PDF/5.PDF;

- Matéria do G1, intitulada “Viva-voz nos carros é mais perigoso do que falar ao celular, diz estudo”: http://g1.globo.com/carros/noticia/2013/06/viva-voz-nos-carros-e-mais-perigoso-do-que-falar-ao-celular-diz-estudo.html;

- Matéria do Jornal “O Estado de São Paulo”, intitulada “Sistemas de celular para carro são criticados”: http://link.estadao.com.br/noticias/geral,sistemas-de-celular-para-carro-sao-criticados,10000030352;

- Matéria da Revista Quatro rodas, sobre distração ao volante: http://quatrorodas.abril.com.br/materia/distracao-ao-volante-745137.

Também vale a pena assistir a alguns vídeos disponíveis na internet:

- Comercial que demonstra a distração cognitiva de quem fala ao telefone celular: https://www.youtube.com/watch?v=6nn2ugcB7ck;

- Comercial que demonstra a distração física e visual de quem simplesmente manuseia o telefone celular: https://www.youtube.com/watch?v=sEGe3FTeuMA;

- Campanha publicitária em Hong Kong, que simula a distração visual ao olhar para a tela do telefone celular: https://www.youtube.com/watch?v=xwpMlLKCgb4;

- Campanha que simula o envolvimento de um condutor em ocorrência de trânsito, enquanto fala ao celular, com fone monoauricular: https://www.youtube.com/watch?v=sXakES10wdk;

- Propaganda inglesa que demonstra ocorrência de trânsito causada por condutora que envia mensagem pelo celular: https://www.youtube.com/watch?v=JCtnghZTLkY; e

- Programa veiculado pelo Pânico na TV (em que tive a oportunidade de ser entrevistado), mostrando os perigos da bebida e do celular ao volante: https://www.youtube.com/watch?v=Cw1rmzrFAZM.

Concluindo: a utilização de telefone celular é infração de trânsito específica, desde que o atual CTB entrou em vigor (22/01/98), incluindo qualquer forma nova desenvolvida (ou que seja criada), que permita que o condutor permaneça com as duas mãos no volante. A partir de 01/11/16, quando o condutor estiver segurando ou manuseando o telefone, será enquadrado no parágrafo único do artigo 252; nos demais casos, continuará a ser passível da multa pelo inciso VI (dependendo tão somente da CERTEZA do agente de trânsito de que a infração realmente ocorreu).

Infelizmente, o CONTRAN não adotou, pelo menos de forma taxativa, a interpretação por mim defendida, quando estabeleceu, no Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, que devem ser autuados, no artigo 252, VI, 2ª parte, os seguintes casos: “Condutor que transita utilizando telefone celular, ainda que em imobilização temporária: - junto ao ouvido; - segurando o aparelho de forma visível; - com uso de fone (s) de ouvido”, deixando de lado outro tipo de utilização. Tal enumeração, no meu entender, é exemplificativa e não exaustiva, a exemplo do que ocorre com várias outras fichas de enquadramento, que não encerram todas as situações possíveis de punição, bastando que o agente de trânsito descreva exatamente o que foi observado.

Defender posicionamento contrário ao apontado significa não só desprezar a interpretação (literal, lógica ou teleológica) do dispositivo legal, mas também ignorar a similitude do perigo de se utilizar o telefone celular retirando uma das mãos do volante ou mantendo-as na posição correta, tendo em vista que todas as formas de utilização representam grande risco à segurança viária.

 

São Paulo, 10 de outubro de 2016.

 

JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança (SP); Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, com atuação no policiamento de trânsito, desde 1996, e atual Comandante da Companhia Tática do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do Centro de Estudos Avançados e Treinamento / Trânsito - CEAT; Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003; Integrante do Fórum Consultivo do Sistema Nacional de Trânsito, sendo representante dos CETRANS da região sudeste por dois mandatos consecutivos e, atualmente, representante das Polícias Militares da região sudeste; Conselheiro fiscal da CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN; Autor de livros e artigos sobre trânsito.

 

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