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Art. 230 - Veículo abandonado na via pública, por Julyver Modesto de Araujo

    Os veículos abandonados em via pública têm se tornado um desafio cada vez mais preocupante aos gestores de trânsito, na maioria dos municípios brasileiros, pois ocupam indevidamente o espaço público, impedem o estacionamento de outros veículos e chegam a se transformar em um sério problema de saúde pública e de segurança, na medida em que, em muitos casos, a carcaça e os restos do veículo passam a permitir o acúmulo de sujeira e de água e viram depósito de dejetos ou esconderijo para usuários de drogas e assaltantes.
    A legislação de trânsito é omissa quanto a esta realidade, inexistindo regulamentação a respeito. A única previsão legal é a constante do Volume I do Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, instituído pela Resolução do Conselho Nacional de Trânsito n. 371/10, que se limita a estabelecer que “o simples abandono de veículo em via pública, estacionado em local não proibido pela sinalização, não caracteriza infração de trânsito, assim, não há previsão para sua remoção por parte do órgão ou entidade executivo de trânsito com circunscrição sobre a via”, ou seja, aponta o problema, mas não oferece qualquer solução.
    É claro que não estamos aqui a tratar de veículos abandonados que constituam objeto de um delito, como roubo, furto ou apropriação indébita, por exemplo, tendo em vista que, nestes casos, não há voluntariedade na conduta do proprietário, que é vítima da subtração de seu bem patrimonial. Sendo o veículo identificado nestas circunstâncias (com a comprovação de se tratar de um ilícito penal), a providência mais correta é o acionamento da Polícia Militar, que registrará a ocorrência e dará destino à Polícia judiciária, para apuração criminal e apreensão do veículo, com base no Código de Processo Penal (artigo 6º).
    No campo da Segurança Pública, em algumas Unidades Federativas, o procedimento policial tem regulação própria, para dar agilidade neste tipo de ocorrência, facilitar a persecução criminal e agilizar a devolução do bem ao legítimo proprietário; é o que ocorre no Estado de São Paulo, em que a Resolução da SSP n. 173/13 estabelece que, ressalvadas as hipóteses de flagrante, não se considera local de crime aquele no qual é encontrado veículo em evidente estado de abandono, o que desobriga a preservação do local (para realização da perícia), determinando-se, desta forma, o imediato encaminhamento à Polícia Civil, para as providências decorrentes (e mantendo-se a possibilidade de exames periciais no veículo, se necessário); mais recentemente, tal procedimento foi ratificado pelo artigo 4º da Resolução da SSP n. 57/15 e complementado pelas providências necessárias visando ao comparecimento do proprietário no local em que o veículo foi localizado.
    Esclarecido, portanto, o que deve ser feito frente a veículos abandonados que tenham sido produto de um crime contra a propriedade, resta-nos perquirir a respeito das providências tendentes a solucionar os casos mais comuns, cujo principal motivo do abandono é o simples desleixo do proprietário, a sua vontade livre e consciente de não mais fazer uso do bem, deixando-o estacionado na via pública.
    Para tanto, considero importante distinguirmos as seguintes situações fáticas:
I) veículo devidamente LICENCIADO, estacionado REGULARMENTE por tempo prolongado, SEM indícios de deterioração;
II) veículo SEM LICENCIAMENTO, estacionado REGULARMENTE por tempo prolongado, SEM indícios de deterioração;
III) veículo (LICENCIADO ou NÃO) estacionado em local PROIBIDO, COM ou SEM indícios de deterioração;
IV) veículo (LICENCIADO ou NÃO) estacionado REGULARMENTE por tempo prolongado, COM indícios de deterioração.
    Efetivamente, será a existência de sinais de deterioração que indicará o abandono do veículo, não sendo possível dizer que o estacionamento por tempo prolongado, por si só, tenha o mesmo reflexo jurídico.
    Isto porque a AUSÊNCIA de indícios de deterioração demonstra a continuidade do interesse do proprietário pelo veículo, não sendo possível dizer que ele se encontra abandonado. Por indícios de deterioração, entenda-se um evidente estado de renúncia ao exercício da posse legítima, sem a conservação adequada do bem material, o que se verifica quando o veículo se encontra coberto de sujeira, pichado, sem vidros ou com vidros quebrados, faltando equipamentos, com pneus totalmente murchos ou somente com as rodas, com lataria podre, enferrujada ou apresentando diversas avarias etc.
    Destaca-se, ademais, que o abandono de um bem constitui uma das causas de perda de propriedade, conforme artigo 1275, inciso III, do Código Civil, a partir do que se constata a necessidade da adoção de providências estatais para liberação do espaço ocupado indevidamente, independente da legislação de trânsito aplicável.
    Creio que as quatro possibilidades acima mencionadas abordam, adequadamente, as situações com as quais nos deparamos cotidianamente, a partir da combinação de 3 fatores que merecem nossa análise: o licenciamento anual; o estado do veículo; e a proibição ou não de estacionamento.
    Destes 3 fatores, tenho o posicionamento de que o licenciamento anual é irrelevante, para determinar o que deve ser feito em relação ao veículo estacionado, muito embora alguns defendam a ideia de que a utilização da via para qualquer finalidade (imobilização ou movimentação do veículo) exige o licenciamento anual.
    Tal entendimento (do qual discordo, conforme explicarei a seguir) decorre da combinação entre o conceito de trânsito (artigo 1º, § 1º e Anexo I), que abrange a circulação, estacionamento e parada de veículos na via pública, e o disposto no artigo 130, que assim estabelece: “todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo”.
    Minha contrariedade a esta conclusão decorre da falta de previsão legal para a conduta de estacionar o veículo sem licenciamento, uma vez que a infração de trânsito do artigo 230, inciso V, para a qual se prevê as penalidades de multa e apreensão do veículo (com a medida administrativa de sua remoção) tem como tipificação legal “CONDUZIR o veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado” e, definitivamente, o estacionamento não pode ser confundido com a condução, exceto se o agente de trânsito tiver comprovado que o veículo foi conduzido em momento anterior à sua imobilização, já com o licenciamento vencido. Não haveria, deste modo, qualquer irregularidade na atitude de um indivíduo que, por exemplo, não tendo providenciado o licenciamento e sem possuir garagem em sua residência, decide não conduzir o veículo até que a pendência seja resolvida e prefere deixá-lo estacionado nas proximidades de sua casa.
    Desta forma, as duas primeiras possibilidades que apontei acima, em que o veículo se encontra estacionado regularmente por tempo prolongado, SEM indícios de deterioração, terão o mesmo desdobramento, independente se o licenciamento se encontra ou não em dia.
    Em ambas, há que se aplicar estritamente o que se encontra no MBFT, isto é, o estacionamento REGULAR não constitui qualquer infração de trânsito e, assim, não cabe sua remoção ao pátio (muito menos qualquer penalidade). Cabe apontar, inclusive, que o fato de se utilizar determinada vaga PERMITIDA na via pública, por tempo prolongado (não importa se por horas, dias, semanas, meses ou anos) NÃO caracteriza qualquer descumprimento de preceito legal, pois inexiste tempo máximo de permanência na vaga, exceto quando se tratar de estacionamento rotativo pago (conhecido como “zona azul” ou “área azul”), conforme norma própria de cada município (no exercício da competência do órgão municipal de trânsito, para implantar, manter e operar o sistema, conforme artigo 24, inciso X, do CTB).
    Em tais casos, não obstante a reclamação de outras pessoas que se sentem prejudicadas pela falta de vaga para estacionamento, dada a ocupação permanente por um determinado veículo, não há o que ser feito pelo órgão de trânsito (ou mesmo pela Polícia Militar), cabendo tão somente a análise de viabilidade de proibição de estacionamento ou criação do sistema de “zona azul”, para possibilitar melhor utilização do espaço público.
    Se, nas duas primeiras hipóteses, não há providência legal a ser adotada, a terceira é de mais fácil solução, pois se o veículo se encontrar em local PROIBIDO, pouco importa se ele está ou não licenciado e se possui ou não sinais de deterioração: em qualquer caso deve ser autuado, pela correspondente infração de trânsito (um dos dezenove incisos do artigo 181) e removido ao depósito fixado pela autoridade competente (a única infração de trânsito de estacionamento que NÃO prevê a remoção do veículo é a constante do inciso XV, por estacionar o veículo na contramão de direção). 
    Importante salientar, todavia, que a remoção do veículo constitui uma medida administrativa, que se define como uma providência complementar à aplicação das penalidades de trânsito e, por isso, não tem o cunho punitivo; isto significa que se o condutor (ou proprietário) comparecer ao local onde o veículo está estacionado e decidir retirá-lo de forma espontânea, não há que se aplicar, de forma impositiva, a remoção ao pátio. Este é, inclusive, o procedimento determinado pelo Manual de Fiscalização, que assim dispõe: “A remoção do veículo não será aplicada se o condutor, regularmente habilitado, solucionar a causa da remoção, desde que isso ocorra antes que a operação de remoção tenha sido iniciada ou quando o agente avaliar que a operação de remoção trará ainda mais prejuízo à segurança e/ou fluidez da via” (a exceção se dará, porém, se o veículo não estiver devidamente licenciado ou não apresentar condições de segurança para circulação, situações em que se aplicará o recolhimento). 
    Assim, uma forma fácil de se eliminar interferências frequentes na via, causadas por veículos que permanecem por tempo prolongado estacionados, é o órgão de trânsito avaliar a conveniência e oportunidade, de, em prol do interesse público, regulamentar a proibição de estacionamento naquele local, com a devida implantação da sinalização de trânsito correspondente (aproveito para esclarecer que somente a linha de proibição na cor amarela, pintada junto ao bordo da pista, NÃO É suficiente para caracterizar a infração de trânsito, sendo necessária a colocação de placa R-6a, proibido estacionar, ou R-6c, proibido parar e estacionar, nos termos do Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito – Resoluções do Contran n. 180/05 e 236/07). 
    A última situação que nos resta avaliar é aquela em que o veículo, apesar de se encontrar em local de estacionamento permitido, demonstra um evidente estado de abandono pelo seu legítimo proprietário (sem queixa de furto ou roubo), com os sinais de deterioração anteriormente apontados.
    Vale acrescentar, aliás, que o proprietário de veículo irrecuperável, ou destinado à desmontagem, deverá requerer a baixa do registro, após quitação de débitos fiscais e de multas de trânsito, no prazo de 15 (quinze) dias após a constatação de sua condição por meio de laudo pericial, conforme o artigo 126 do CTB (alterado pela Lei n. 12.977/14), regulamentado pela Resolução do Contran n. 11/98, sob pena de cometimento da infração do artigo 240 (“Deixar o responsável de promover a baixa do registro de veículo irrecuperável ou definitivamente desmontado”). Tal responsabilidade recai sobre a companhia seguradora ou o adquirente do veículo destinado à desmontagem, quando estes sucederem ao proprietário (parágrafo único do artigo 126).
    Fora a possibilidade de aplicação da multa do artigo 240 (que não prevê a remoção do veículo), não há, na legislação de trânsito, outra providência a ser adotada quanto ao veículo; contudo estaremos diante de um fato para o qual haverá outro tipo de preocupação da Administração pública, em vista dos riscos à saúde e à segurança da população, o que está muito mais relacionado à questão da limpeza urbana do que à regulamentação viária.
    Neste aspecto, a saída que tem sido encontrada pela municipalidade é a criação de leis locais, com base na competência constitucional do município para legislar sobre assuntos de interesse local e promover a gestão dos serviços públicos (artigo 30, incisos I e VII, da CF/88).
    Na cidade de São Paulo, por exemplo, desde 1987, existe previsão a este respeito, na legislação própria sobre limpeza urbana (Lei municipal n. 10.315/87), que prevê estarem sujeitos à apreensão, pagamento de multa e despesas de remoção os veículos abandonados nas vias públicas, por mais de 5 (cinco) dias consecutivos (artigo 23, § 3º, com redação dada pela Lei n. 10.746/89).
    A fiscalização é de competência concorrente da AMLURB (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana) e das Subprefeituras, conforme Lei n. 13.478/02 e Decreto n. 42.238/02, sendo que as solicitações da comunidade podem ser encaminhadas pelo telefone 156 (todos os dias, 24 horas) ou pelo site sac.prefeitura.sp.gov.br.
    Apesar de nem toda legislação local seguir o mesmo prazo, de 5 dias, para caracterizar o abandono, o procedimento é normalmente o mesmo, de forma a identificar o veículo, afixar aviso destinado ao proprietário (ou comunicá-lo por meio de remessa postal ou edital), a fim de lhe dar a oportunidade para retirada do veículo e, somente após, é que se procede a remoção para o pátio, com o posterior leilão, decorrida a permanência mínima estipulada na lei.
    Algumas cidades estabelecem um tempo maior de estacionamento, para caracterizar o abandono. São 10 (dias), na legislação de Campinas/SP e Belo Horizonte/MG (respectivamente, Lei n. 14.530/12, regulamentada pelo Decreto n. 18.796/15, e Lei n. 10.885/15); 15 (quinze) dias em Vitória/ES (Decreto n. 15.135/11) e 30 (trinta) dias, em Natal/RN, Porto Alegre/RS e Curitiba/PR (pela ordem, Lei n. 6.443/14; Lei n. 10.837/10; e Lei n. 13.805/11).
    Outros municípios não chegam a determinar um lapso temporal mínimo de estacionamento, mas descrevem os sinais de deterioração que demonstram o estado de abandono. É o que ocorre em Divinópolis/MG (Lei n. 7.554/12); Maringá/PR (Lei n. 9.651/13); Rio de Janeiro/RJ (Lei n. 5.301/11 e Decreto n. 36.805/13) e Recife/PE (Lei n. 17.936/13).
    Em resumo, a retirada de veículos destruídos e suas peças da via pública, quando estacionados em local permitido, deve ser tratada como qualquer outro resíduo urbano: tais sucatas, uma vez comprovada que não se originam de ilícitos, devem ter o destino determinado na legislação relativa à limpeza urbana.
    Porém, uma questão crucial a ser avaliada pela administração local é que a competência para originar este tipo de Projeto de Lei é do Poder Executivo (e não do Legislativo), tendo em vista versar sobre a função administrativa, criar serviços para componentes da organização municipal e implicar, muitas vezes, em aumento de despesa. Neste sentido, algumas Leis que tratavam do tema “retirada de veículos abandonados nas vias públicas” foram consideradas inconstitucionais justamente sob esse argumento de vício formal: como exemplos, cito a Lei n. 6.097/14, de Ourinhos (ADI 21582017120148260000, TJSP, Relator: Des. Guerrieri Rezende); Lei n. 10.413/12, de Belo Horizonte (ADI n. 1.0000.12.050839-5/000, TJMG, Relatora: Desª. Selma Marques); e Lei n. 8.046/10, de Vitória (ADI n. 100120009111, TJES, Relator: Des. Sérgio Luiz Teixeira Gama).
 
    Por fim, cabe ressaltar que, no âmbito federal, já existem propostas para incluir o assunto no Código de Trânsito Brasileiro.
    Em 2013, o Dep Fed Osvaldo Reis, do PMDB/TO apresentou o Projeto de Lei n. 6.603/13, que pretendia incluir o artigo 104-A ao Código de Trânsito Brasileiro, com os seguintes dizeres: “O veículo deixado em via ou estacionamento público, com evidências de haver perdido a capacidade de se mover por si mesmo ou de se achar em avançado processo de deterioração, oferecendo risco à saúde ou à segurança pública, será removido nos termos do art. 271 deste Código”, com a correlata infração de trânsito no artigo 253-A; entretanto, tal PL foi arquivado no início de 2015, na mudança de legislatura, em decorrência da não reeleição do parlamentar.
    Outros dois Projetos, ainda em tramitação, aguardam análise do Congresso Nacional: o PL n. 8.238/14, do Dep Fed Dr. Grilo (Solidariedade/MG), que tem uma redação confusa, pois estabelece que o abandono do veículo se caracteriza após 30 dias (artigo 1º), ao mesmo tempo em que fixa o procedimento após 60 dias (artigo 2º, I) e, mais recentemente, o PL n. 1.736/15, do Dep Fed Laudivio Carvalho (PMDB/MG), que pretende incluir o inciso XXI no artigo 24 do CTB (dando competência ao órgão municipal de trânsito para remover veículos abandonados) e cria a infração do inciso XX no artigo 181, caracterizada pela ocupação da vaga por mais de 30 dias, impedindo o estacionamento de outros veículos (independente se apresenta ou não sinais de deterioração).
    Ambos os Projetos estão na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) e apensados ao PL n. 5.557/13, do Dep Fed Alfredo Kaefer (PSDB/PR), com proposição sujeita à apreciação pelo Plenário, o qual, infelizmente, já está capenga, pois pretende alterar, além do artigo 328 do CTB (leilão), a Lei n. 6.575/78 (que foi recentemente REVOGADA pela Lei n. 13.160/15, em vigor a partir de 23/01/16). 
 
 
São Paulo, 10 de janeiro de 2016.
 
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, atual Chefe do Gabinete de Treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do CEAT (www.ceatt.com.br); Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003 e representante dos CETRANS da região sudeste no Fórum Consultivo por dois mandatos consecutivos; Diretor do Conselho Consultivo da ABRAM e Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN (www.abptran.org); Conselheiro fiscal da CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Autor de livros e artigos sobre trânsito.
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