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Art. 306 - Embriaguez ao volante (crime doloso?), por Julyver Modesto de Araujo

    Desde que o atual Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor, em 1998, três foram as Leis que alteraram os preceitos normativos relativos à “embriaguez ao volante”: a Lei nº 11.275/06, a nº 11.705/08 (conhecida popularmente como “lei seca” e complementada pelo Decreto nº 6.488/08) e a nº 12.760/12 (denominada de “nova lei seca”).
    Sem nos atermos à retrospectiva histórica sobre tais alterações, e a fim de nos fixarmos ao que realmente nos interessa neste estudo, a legislação ora vigente prevê, efetivamente, a tolerância zero de álcool para quem dirige veículo automotor, estabelecendo duas formas de sanção àquele que descumprir esta proibição: uma punição na esfera administrativa (infração de trânsito do artigo 165) e uma sanção penal (crime do artigo 306).
    No artigo 165, a redação legislativa, desde dezembro de 2012, passou a ser a seguinte: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, consubstanciando infração de trânsito gravíssima, com penalidade de multa de R$ 1.915,40 e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; na reincidência, antes de completado um ano, além do valor da multa ser dobrado (R$ 3.830,80), prevê-se a cassação do documento de habilitação (artigo 263, inciso II).
    O crime do artigo 306 ocorre quando se “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, conduta que pode ser constatada de duas formas: I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora (esta disciplina encontra-se na Resolução do Contran nº 432/13). A pena prevista é a de detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.
    Estas são as atuais punições para quem conduz um veículo automotor sob a influência de álcool. Feitas estas explicações iniciais, pretendo discorrer, neste artigo, de maneira sucinta e didática, sobre um questionamento cada vez mais comum: o motorista embriagado, que causa morte ou lesão no trânsito, deve responder por crime doloso ou culposo?
    O assunto, obviamente, pode ser explorado de maneira extensa e acadêmica; entretanto, procurarei evitar divagações doutrinárias e termos próprios do meio jurídico, que inviabilizam a compreensão de grande parte dos que se interessam pelo tema trânsito (não só os profissionais que atuam na área, mas os usuários da via pública, de maneira geral), a fim de explicar tal questão e apontar quais são os reflexos desta análise.
    Primeiramente, considero importante esclarecer dois aspectos: 1º) o que é crime doloso e culposo; e 2º) qual a real repercussão desta distinção.
    A definição clássica de crime (ou infração penal) é de todo fato (ação ou omissão humanas) típico (conduta descrita em lei), antijurídico (contra o ordenamento jurídico existente) e culpável (reprovável perante a sociedade).
    Tanto o crime, que também é denominado infração penal, quanto a infração administrativa (como a de trânsito) constituem condutas puníveis na lei, existindo diferenças muito sutis em relação a elas; podemos citar, em especial, três: I) norma aplicável (Direito Penal x Direito Administrativo); II) autoridade responsável pela imposição da pena (Poder Judiciário x Poder Executivo); e III) tipo de sanção a ser imposta (penal x administrativa).
    A diferença entre crime doloso e culposo baseia-se na responsabilidade do sujeito que praticou o ato, em relação à sua prévia intenção de que o resultado obtido realmente ocorresse.
    O Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40) estabelece, em seu artigo 18, que o crime é doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; e culposo quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
    O dolo pressupõe, destarte, uma vontade e consciência do ato praticado, enquanto que a culpa ocorre quando houver uma falta de cuidado, um erro não proposital.
    Dizer, portanto, se um crime ocorreu por dolo ou culpa dependerá da análise judicial de cada caso; por meio do conjunto probatório, é que o juiz poderá concluir se houve uma real intenção do autor dos fatos ou se restou demonstrado mero desleixo, ao não ter evitado o acontecimento fatídico.
    A regra, no Direito penal brasileiro, é que sejam punidas apenas as condutas praticadas com a intenção de se produzir o resultado (ou com o risco assumido neste sentido), deixando de lado os comportamentos que, embora tenham gerado um resultado indesejado, não foram premeditados pelo responsável pela ação ou omissão. Assim é que o parágrafo único do artigo 18 determina: “Salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”; ou seja, para que um crime seja punível também na modalidade culposa, o texto legal deve prever esta condição.
    Deste modo, o crime constante do artigo 306 do CTB, comumente chamado de “embriaguez ao volante” é, sem sombra de dúvida, doloso; quem conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool somente pode ser punido se assim quis agir ou assumiu o risco de que tal acontecesse, já que o tipo penal não prevê a conduta culposa como também punível.
    Mas não é isto, na verdade, que queremos tratar quando perguntamos se a “embriaguez ao volante” é crime doloso (esta, aliás, é uma pergunta formulada de maneira equivocada); o que se questiona é se esta condição do motorista pode ser interpretada como fator preponderante para que a lesão ou o homicídio ocorridos sejam classificados como doloso; em outras palavras, quem bebe, dirige e mata (ou lesiona) quis que a morte (ou lesão) acontecesse, ou, pelo menos, assumiu o risco desta possibilidade? Deve, por este motivo, responder pelo Código Penal (em vez de pelo CTB)?
    Aqui vem, em continuidade, a segunda questão a ser avaliada: qual é o desdobramento de se avaliar a classificação de um crime como sendo culposo ou doloso? O primeiro reflexo é que, como vimos, sendo culposa, nem toda conduta configura crime.
    No caso do homicídio ou da lesão corporal, ambos são puníveis nas modalidades dolosa E culposa; assim, não há que se falar em inexistência da prática do crime em qualquer situação que se comprove a imprudência, negligência ou imperícia do autor; o que vai ocorrer é, tão somente, diferenciação na aplicação das penas, sendo, via de regra, o crime doloso punido mais severamente que o culposo (até mesmo por um critério lógico).
    O Código de Trânsito Brasileiro, ao incluir matéria de cunho penal em seu Capítulo XIX, inovou o tratamento dos crimes cometidos na direção de veículos automotores (os quais, anteriormente, eram regrados pelo Código Penal, como qualquer outro), tratando, todavia, do homicídio e da lesão corporal apenas quando praticados de maneira culposa, por erro “não proposital” do sujeito (artigos 302 e 303).
    Assim, se alguém, na direção de veículo automotor, matar outra pessoa, SEM a intenção que isto acontecesse (e sem assumir o risco na produção do resultado), responderá pelo crime de trânsito do artigo 302 do CTB e, caso contrário, pelo crime de homicídio do artigo 121 do Código Penal (como se o veículo fosse apenas uma arma para a ocorrência do crime, como qualquer outra utilizada pelo homicida). No primeiro caso, terá uma pena de detenção de dois a quatro anos e, no segundo caso, uma pena de seis a vinte anos (cabe ressaltar que o homicídio culposo cometido fora do trânsito tem uma pena que varia de um a três anos, menor que a prevista no artigo 302, conforme § 3º do artigo 121 do CP).
    O caso da lesão corporal é mais emblemático, por uma falha legislativa: enquanto a lesão dolosa (artigo 129 do CP) pune o autor com pena de detenção, de três meses a um ano, a lesão corporal culposa no trânsito (artigo 303 do CTB) tem pena de seis meses a dois anos; isto é, por incrível que pareça, o motorista que causa lesão em outra pessoa, durante a condução de veículo automotor, terá uma pena maior se o seu comportamento não foi intencional, do que se restar comprovado a sua decisão anterior de se produzir a mera lesão na vítima (desde que, obviamente, se constate a intenção em somente machucar; pois, a depender da situação, pode-se concluir pela tentativa de homicídio; e aí, a pena será maior – a mesma pena do crime consumado, diminuída de um a dois terços, conforme artigo 14, parágrafo único, do CP).
    Normalmente, questiona-se a possibilidade de classificação do crime doloso, nas ocorrências de trânsito com vítimas, causadas por motoristas embriagados, com o objetivo de puni-los mais severamente. Como se vê, o efetivo aumento da pena somente ocorrerá nos casos de evento morte, posto que, na lesão, terá maior reprimenda aquele que responder pelo crime de trânsito (em vez do crime comum). 
    Esclarecidos os dois aspectos a que me propus: a diferenciação entre crime doloso e culposo, e a repercussão desta distinção, passemos à análise da “embriaguez ao volante” como fator decisivo para se configurar o homicídio (ou a lesão corporal) como crime doloso.
    Quando a pessoa, premeditamente, ingere bebida alcoólica, para, sob seu efeito, praticar um crime (por exemplo, atropelar alguém), entende-se presente o dolo, pois o que se avalia é a liberdade de ação no momento em que se decidiu por aquela conduta. A doutrina define essa situação como sendo a teoria da “actio libera in causa” (ação livre na causa) e a lei penal NÃO isenta, de responsabilidade, o autor pelo ato sob o estado de embriaguez, como podemos constatar pelo artigo 28, inciso II, do CP: “Não excluem a imputabilidade penal ... a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”.
    Podemos concluir, nestes termos, que a embriaguez pré-ordenada é concebida, pelo Direito, como uma decisão livre, que mantém a imputabilidade penal do sujeito e não o isenta de responsabilidade apenas pelo fato de se encontrar embriagado, no momento em que o resultado, efetivamente, ocorreu.
    Excetuando a situação em que o sujeito bebe, para utilizar o veículo automotor na prática do crime (o que não exclui, portanto, o dolo de sua conduta), torna-se difícil conceber que alguém, por beber e dirigir, tenha a real intenção de matar (ou lesionar) alguém, durante a condução do veículo na via pública.
    Quando muito, poderíamos dizer que se assumiu o resultado, por conhecer os riscos a que se sujeitou, após a diminuição dos reflexos e da capacidade psicomotora, sob a influência de álcool, o que configuraria a segunda forma de dolo, constante do artigo 18, inciso I, do CP (“assumiu o risco de produzi-lo”), o que é denominado, pela doutrina, de dolo eventual.
    A grande dificuldade de se estabelecer a ocorrência de dolo eventual é a sua similaridade com o que se convencionou chamar, no Direito, de culpa consciente, situação em que a pessoa também tem a percepção dos riscos a que está sujeito. A diferença é que, no dolo eventual, o agente sabe da possibilidade de que ocorra o resultado e, mesmo assim, assume o risco de que aconteça; na culpa consciente, ele é capaz de prever o resultado, mas se considera capaz de evitá-lo.
    Esta proximidade entre o dolo eventual e a culpa consciente é que impede uma generalização, no sentido de se dizer que todo motorista embriagado que ocasiona vítimas no trânsito deve responder pelo crime doloso; tudo vai depender de como os fatos se sucederam, até o resultado concreto.
    O Código de Trânsito, em uma de suas alterações (Lei nº 11.275/06), chegou a direcionar a interpretação jurídica ao crime culposo, como regra, quando estabeleceu, no inciso V do parágrafo único do artigo 302, a influência de álcool como uma das causas de aumento de pena do crime de trânsito, o que era transformado como argumento de defesa dos ébrios ao volante: se a influência de álcool ERA causa de aumento de pena do crime culposo, não poderia ser usada como determinante do crime doloso (no dolo eventual). A polêmica em torno da questão acabou ocasionando a revogação deste inciso V, pela Lei nº 11.705/08, permitindo que cada caso seja avaliado circunstancialmente.
    Há a necessidade, caso a caso, de se avaliar o conjunto fático-probatório, que poderá direcionar a decisão judicial para o crime culposo ou doloso, a depender de como tudo se transcorreu. Neste sentido, destaco as explicações do Sr. Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, na relatoria de Habeas Corpus do Estado do Rio de Janeiro (HC nº 101698/11): “A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente”. De igual modo, tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça (ver, por exemplo, HC nº 94916/10-SP; 196292/12-PE; 118071/11-MT e 36714/05-SP). 
    Ainda que a crescente violência no trânsito, e a consequente necessidade de incremento da ação fiscalizadora e punitiva do Estado, nos levem ao desejo de recrudescimento da lei, forçoso concluir que, mercê de tudo o que foi apontado, não é possível definir a “embriaguez ao volante” como fator determinante de um crime doloso, quando houver vítimas nas ocorrências de trânsito. Este tipo de discurso apenas reflete um desejo da sociedade, de se punir mais duramente quem mata no trânsito, mas não decorre da análise de nossa legislação processual penal.
 
 
São Paulo, 10 de fevereiro de 2014.
 
 
JULYVER MODESTO DE ARAUJO, MESTRE em Direito do Estado pela PUC/SP e ESPECIALISTA em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, atual Chefe do Gabinete de Treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do CEAT (www.ceatt.com.br); Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003 e representante dos CETRANS da região sudeste no Fórum Consultivo por dois mandatos consecutivos; Diretor do Conselho Consultivo da ABRAM e Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN (www.abptran.org); Conselheiro fiscal da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Autor de livros e artigos sobre trânsito, além do blog www.transitoumaimagem100palavras.blogspot.com.
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