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Art. 260 - Anistia de multas? sou contra e justifico..., por Luís Carlos Paulino

    Como é de conhecimento da maioria dos leitores, vivenciamos atualmente a Década Mundial de Ações pela Segurança no Trânsito. No dia 02 de março de 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou oficialmente o decênio de 2011 a 2020 como o período onde países de todo o mundo deverão adotar providências para conter e reverter a tendência crescente de fatalidades e ferimentos graves em acidentes no trânsito no planeta. Há menos de uma semana (nos dias 18 e 19 de novembro de 2015) foi realizada em Brasília a 2ª Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito. A expressão Time for Results complementa a ideia do evento que promoveu o encontro intersetorial de pessoas envolvidas nos variados segmentos da gestão do trânsito em diferentes partes do mundo. Em tempos de avaliar resultados, imperioso que se analise o que foi feito e, principalmente, o que há por fazer, quais os desafios que se impõem.
    Por uma dessas infelizes coincidências (pois de antemão já excluo a hipótese de que tenha sido proposital), exatamente no dia 19/11/2015, quando se encerrava a referida conferência e restava elaborado um documento intitulado Declaração de Brasília, no qual fica patenteada a preocupação com a situação de países como o Brasil (onde os resultados ainda são bastante acanhados), foi aprovada pela Câmara Municipal de Fortaleza a mensagem nº 052/2015, de iniciativa do prefeito Roberto Cláudio Rodrigues Bezerra. Com a sanção do chefe do executivo e ampla divulgação no noticiário, tem-se em vigor a Lei nº 310/2015, dispondo sobre a concessão de estímulo para pagamento e remissão de multas decorrentes de autuações lavradas pela Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC). A tramitação da matéria deu-se em caráter de urgência (da autuação da proposição à aprovação, foram apenas 4 dias!).
    Mas, trocando em miúdos, o que estabelece a tal da lei nº 310/2015?  Desconto de 20% nas multas decorrentes das autuações feitas pela Autarquia de Trânsito de Fortaleza e o perdão das multas por infrações registradas até 31 de dezembro de 2012, cujos valores sejam iguais ou inferiores a R$ 400,00 (quatrocentos reais). Ou seja, para além de “estimular” alguns proprietários à quitação de débitos originados por condutas reprováveis no trânsito, a menos de um ano das eleições municipais (o que para o atual gestor afigura-se uma dura batalha pela reeleição) o mandatário também dá uma de condescendente, perdoando, com uma só canetada, uma leva de infratores.
    De se notar que o mesmo prefeito recentemente lançou mão da guarda municipal para, em conjunto com a AMC, fiscalizar o trânsito da capital (o que, em tese, teria sido motivado por uma demanda de infrações muito superior à capacidade da já existente equipe de fiscalização). Nesse contexto, perdoar infratores me parece altamente contraditório, para início de conversa!
    Além disso, não se pode olvidar que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) já estabelece os procedimentos para a fiscalização e autuação das infrações, a fase recursal (onde deverá ser observado o direito à ampla defesa e ao contraditório) e a cobrança das penalidades do tipo multa, sendo absolutamente desnecessária qualquer lei estadual ou municipal versando sobre esse assunto.
    A lei em análise me parece absolutamente contrária ao interesse público, haja vista que, nos termos do artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro, a receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito há de ser aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito. Prevê ainda o parágrafo único do citado artigo do CTB que o percentual de 5% do valor das multas de trânsito arrecadados será depositado, mensalmente, na conta de fundo de âmbito nacional destinado à segurança e à educação de trânsito (o conhecido “FUNSET”). Desse modo, quando o município dispensa multas abre mão do que deveria receber para utilizar em benefício da segurança e da educação para o trânsito e, ao mesmo tempo, faz cortesia com o chapéu alheio, deixando de arrecadar e repassar à União os 5% previstos. Sou da opinião que, em um país onde a cada 12 minutos morre uma pessoa em razão da violência no trânsito, qualquer ação “graciosa” no sentido de beneficiar infratores, deve ser encarada com muitas reservas. Multas são aplicadas em relação a infrações praticadas no contexto do trânsito, o que, no mais das vezes, representa ampliação dos riscos de acidentes. Avançar o sinal vermelho, por exemplo, é uma infração gravíssima punida com multa de R$ 191,54. Mas é, acima de tudo, uma situação de risco potencial de acidente! Não me parece pedagógico que, uma vez flagrados e autuados comportamentos irresponsáveis no trânsito, posteriormente alguém venha posar de bonzinho, ofertando indulgências.
    Atendo-se à constitucionalidade da iniciativa, cabe frisar que a Constituição Federal é taxativa ao estabelecer que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI). Ocorre que, inobstante isso, não raro chefes de executivos e legisladores estaduais e municipais, no afã de atender interesses nem sempre muito claros, inserem-se na competência privativa da União criando “leis” que são, por isso mesmo, inconstitucionais desde a origem – e, mais grave, estão quase sempre na contramão da segurança viária.
    Nesse sentido já se posicionou o Tribunal de Justiça de São Paulo: 
 
MANDADO DE SEGURANÇA - MULTA DE TRÂNSITO - LEI MUNICIPAL DE ARAÇATUBA QUE CONCEDE ANISTIA A TODOS OS INFRATORES DE TRÂNSITO ATÉ A DATA DE SUA PUBLICAÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI RECONHECIDA PELO ÓRGÃO ESPECIAL DESTE E. TRIBUNAL - Nos termos do art. 22, XI da Constituição Federal, competência exclusiva da União para legislar sobre a matéria, incluindo, anistia a multas por infração de trânsito - Segurança concedida na origem. Recursos oficial e voluntário providos para revogação da segurança. (TJ-SP, Processo: 1708074920068260000 SP, Relatora: Ana Luiza Liarte, data de julgamento: 29/11/2010, 4ª Câmara de Direito Público).
 
    Todavia, para dar mais lastro à minha opinião, colaciono precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre a hipótese de perdão, anistia, remissão (ou qualquer termo equivalente) de multas aplicadas tendo por base infrações de trânsito:
 
CONSTITUCIONAL. TRÂNSITO. MULTA: ISENÇÃO. Lei 11.387/2000 do Estado de Santa Catarina. C.F., art. 22, XI. I.- Legislação sobre trânsito: competência privativa federal: C.F., art. 22, XI. II.- Lei 11.387, de 03.5.2000, do Estado de Santa Catarina, que isenta do pagamento de multas de trânsito nas hipóteses que menciona: sua inconstitucionalidade, porque trata-se de matéria que diz respeito ao trânsito. III.- ADI julgada procedente. (STF - ADI nº 2.814/SC, Relator o Min. Carlos Velloso, DJ de 5/12/03).
 
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 3.279/99 do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre o cancelamento de multas de trânsito anotadas em rodovias estaduais em certo período relativas a determinada espécie de veículo. Inconstitucionalidade formal. Violação da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte. 1. Inconstitucionalidade formal da Lei nº 3.279/99 do Estado do Rio de Janeiro, a qual dispõe sobre o cancelamento de multas de trânsito. 2. Competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte, consoante disposto no art. 22, inciso IX, da Constituição. Precedentes: ADI nº 3.196/ES; ADI nº 3.444/RS; ADI nº 3.186/DF; ADI nº 2.432/RN; ADI nº 2.814/SC. 3. O cancelamento de toda e qualquer infração é anistia, não podendo ser confundido com o poder administrativo de anular penalidades irregularmente impostas, o qual pressupõe exame individualizado. Somente a própria União pode anistiar ou perdoar as multas aplicadas pelos órgãos responsáveis, restando patente a invasão da competência privativa da União no caso em questão. 4. Ação direita de inconstitucionalidade julgada procedente. (STF - ADI: 2137 RJ, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 11/04/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-086 DIVULG 08-05-2013 PUBLIC 09-05-2013).
 
A fim de que não pairem dúvidas acerca da competência privativa da União no que tange à matéria – e da rigidez com que o STF interpreta esse dispositivo da Constituição –, o entendimento pacificado da Suprema Corte é no sentido de que nem mesmo parcelamentos das multas de trânsito podem ser objetos de leis estaduais ou municipais, conforme se vê nos seguintes julgados:
 
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 12.064, DE 29.03.04, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. TRÂNSITO. INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO PREVISTA NO ART. 22, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. É pacífico nesta Corte o entendimento de que o trânsito é matéria cuja competência legislativa é atribuída, privativamente, à União, conforme reza o art. 22, XI, da Constituição Federal. Precedentes: ADI 2.064, rel. Min. Maurício Corrêa e ADI 2.137-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 2. A instituição da forma parcelada de pagamento da multa aplicada pela prática de infração de trânsito integra o conjunto de temas enfeixados pelo art. 22, XI, da Constituição Federal. Precedentes: ADI 2.432 (medida cautelar, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 21.09.01; mérito, rel. Min. Eros Grau, julg. em 09.03.05, Informativo STF 379) e ADI 3.196-MC, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 22.04.05. 3. Ação direta cujo pedido se julga procedente” (ADI nº 3.444/RS, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 3/2/06).
 
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.723/99 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. PARCELAMENTO DE MULTAS DE TRÂNSITO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. Esta Corte, em pronunciamentos reiterados, assentou ter, a Constituição do Brasil, conferido exclusivamente à União a competência para legislar sobre trânsito, sendo certo que os Estados-membros não podem, até o advento da lei complementar prevista no parágrafo único do artigo 22 da CB/88, legislar a propósito das matérias relacionadas no preceito. 2. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente” (ADI nº 2.432/RN, Relator o Min. Eros Grau, DJ de 26/8/05).
 
    Em síntese: aos estados e municípios não cabe sequer estabelecer parcelamento de multas de trânsito, que dirá dispensá-las!
    Outro aspecto a ser considerado é o seguinte: o artigo 5º da lei em tela determina o cancelamento das multas relativas às infrações de trânsito flagradas pela fiscalização da AMC (até o final do ano 2012), e não quitadas, deixando tácito que os proprietários e/ou condutores que já pagaram as multas não terão esses valores restituídos; ensejando, assim, um tratamento distinto entre os administrados. Tal situação tende a provocar nos cidadãos honestos e cumpridores dos seus deveres, uma reflexão na linha daquela feita por Rui Barbosa (atualíssima e muito a propósito): “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. (Senado Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86)
    Esse tratamento diferenciado, o qual, diga-se de passagem, privilegia o inadimplente, o descumpridor – tanto do Código de Trânsito (pois só é multado quem o descumpre), quanto da penalidade imposta – ao passo que pune o cidadão cumpridor de suas obrigações, caracteriza uma afronta ao princípio da isonomia insculpido na Carta Magna, por estabelecer fator diferenciador sem justificativa plausível ou razoável.
    Para além de tudo isso, a Lei Municipal nº 310/2015 é um balde d’água gelada na cabeça daqueles que atuam na fiscalização do trânsito na capital cearense. Sabe aqueles dissabores todos, as incompreensões, as piadas, os desaforos (e até algumas agressões físicas registradas aqui e acolá) que vocês, meus amigos agentes da AMC, sofreram até o final de 2012, enquanto fiscalizavam e autuavam tantos infratores? Perdoem, afinal o ente federado que vocês oficialmente representam já teve essa iniciativa...
 
 
Luís Carlos Paulino
Pedagogo, bacharel em Direito, especialista em Gestão e Direito de Trânsito (CEAT/INESP), membro titular da Câmara Temática de Educação para o Trânsito e Cidadania do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) – biênio 2015-2016, autor dos livros “TRÂNSITO NO BRASIL: desafios à efetivação do direito de ir e vir e permanecer vivo” e “TRÂNSITO SEGURO: desafios, dilemas e paradoxos”. É consultor técnico do Instituto Brasileiro de Defesa da Cidadania (IBRADEC), consultor técnico da Federação Nacional das Associações de Detrans (FENASDETRAN), membro da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito (ABPTRAN), coordenador da Associação Brasileira de Educação de Trânsito (ABETRAN), na Região Nordeste, e coordenador estadual do Movimento Maio Amarelo no Ceará (http://maioamarelo.com/).
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